Muito Além do Cidadão Kane é um documentário produzido pela BBC de Londres - proibido no Brasil desde a estréia, em 1993, por decisão judicial - que trata das relações sombrias entre a Rede Globo de Televisão, na pessoa de Roberto Marinho, com o cenário político brasileiro. - Os cortes e manipulações efetuados na edição do último debate entre Luiz Inácio da Silva e Fernando Collor de Mello, que influenciaram a eleição de 1989. - Apoio a ditadura militar e censura a artistas, como Chico Buarque que por anos foi proibido de ter seu nome divulgado na emissora. - Criação de mitos culturalmente questionáveis, veiculação de notícias frívolas e alienação humana. - Depoimentos de Leonel Brizola, Chico Buarque, Washington Olivetto, entre outros jornalistas, historiadores e estudiosos da sociedade brasileira. "Todo brasileiro deveria ver Além do Cidadão Kane".
Eu, particularmente, recomendo a assistirem a partir de 1 hora e 12 minutos!
Eu, particularmente, recomendo a assistirem a partir de 1 hora e 12 minutos!
No dia 10 de março de 1993 foi emitido no canal britânico Channel 4, um documentário intitulado "Brasil: Muito Além do Cidadão Kane". O diretor do documentário, Simon Hartog, apresenta o empresário Roberto Marinho (1904-2003) como um exemplo alarmante da concentração de poder da imprensa do Brasil — daí a referência do título à personagem de Orson Welles no filme Cidadão Kane, que por sua vez faz alusão direta ao magnata das comunicações dos Estados Unidos, William Randolph Hearst.
Como o documentário mostra, o domínio crescente da TV Globo na imprensa brasileira envolve contratos ilegais com empresas estrangeiras, um apoio incondicional aos governos ditatoriais no Brasil e tudo o que estiver a seu alcance para garantir seus interesses — o que inclui até a manipulação de debates políticos para eleger o governo, como ocorreu no caso Collor de Mello. Mais do que isso, o filme explica como funciona a política brasileira de comunicações e os critérios arbitrários pelos quais se concedem e renovam as concessões de canais de televisão e rádio.
Para ser exibido na televisão ou repoduzido em vídeo o documentário precisaria da autorização da rede Globo, uma vez que muitas imagens apresentadas eram da própria Globo. Desnecessário dizer que esse documentário nunca foi exibido na televisão. Como era de se esperar, a Globo se recusou a ceder os direitos de exibição de suas imagens.
A manipulação da grande imprensa no Brasil tem uma longa história. Grandes jornalistas já atacavam a corrupção da imprensa na Primeira República. Rui Barbosa denunciou o primeiro presidente brasileiro, Marechal Deodoro da Fonseca, por utilizar o Banco do Brasil para calar uma redação que faria denúncias de fatos sórdidos, com a quantia, na época exorbitante, de 200 contos de réis. Essa prática continuou ao longo dos anos: em diversas ocasiões o Banco do Brasil foi pressionado pelos governantes para fazer grandes empréstimos que jamais foram pagos. Nos anos 50, jornalistas influentes como Assis de Chateaubriand recebiam tais "empréstimos" com freqüência.
Que práticas de corrupção semelhantes ainda acontecem na imprensa brasileira fica evidente em dois episódios recentes. O primeiro é o caso Nassif X Veja. De 2003 em diante o jornalista Luís Nassif apresentou uma série de artigos criticando o antijornalismo da diretoria editorial da revista Veja, que envolveria, entre outras coisas, interesses corporativos, destruição de reputações e tráfico de influências. Segundo Nassif, o banqueiro Daniel Dantas, seria um dos que mais se utilizariam da revista Veja para confundir a opinião pública, valendo-se de ações judiciais, matérias na imprensa com dossiês falsos, entre outras coisas. Depois de fazer tais críticas, Nassif foi alvo de uma tentativa de "assasinato de reputação" em duas colunas na revista Veja, em 14 e 21 de agosto de 2005. A revista também entrou na justiça tentando causar o maior prejuízo possível a Nassif.
Outro episódio recente, mas que diferentemente do primeiro está sendo noticiado diariamente na imprensa, é o caso Elvira Lobato e Folha de São Paulo X Igreja Universal do Reino de Deus. Na reportagem "Igreja Universal Completa 30 anos com Império Empresarial" publicada pela Folha em 15 de dezembro, a repórter Elvira Lobato apresenta uma série de indícios de como Edir Macedo, o dono da Igreja Universal, teria construído um império empresarial de maneira ilícita. A resposta de Macedo foi rápida: Elvira Lobato e a Folha foram alvos de uma enxurrada de processos de fiéis da Igreja (cerca de 50) vindos de todos os cantos do país, que alegaram se sentir ofendidos pela reportagem, mesmo que nenhum deles tenha sido citado pela jornalista.
A constituição brasileira permite que alguém que se sinta ofendido com uma reportagem recorra à justiça. Mas não é este o caso aqui. Estes processos são uma tentativa orquestrada da Igreja Universal de inibir a liberdade de expressão e livre circulação de informação no país. O ato de incentivar os fiéis a recorrer à justiça por si só já constitui um modo de punir a imprensa. Qualquer que seja a decisão dos tribunais, a jornalista e a Folha sairão prejudicadas: basta pensar nas despesas absurdas que o processado deverá arcar com viagens e hospedagens em várias regiões do país além da contratação de advogados para acompanhar cada um dos processos.
O dono da Igreja Universal do Reino de Deus, Edir Macedo, é hoje o maior proprietário de concessões de televisão no Brasil. Além das suas 23 emissoras de TV, possui mais 40 emissoras de rádio registradas em nome de pastores de sua confiança. Se o falecido Roberto Marinho já chegou a ter o controle de 32 emissoras além das afiliadas (como mostra o documentário de Simon Hartog), hoje a Globo tem apenas cinco concessões de TV (São Paulo, Rio, Recife, Belo Horizonte e Brasília) e a família Marinho tem cerca 10% do capital de 18 afiliadas. A rede Bandeirantes tem 10 concessões de TV assim como o SBT. As emissoras de Edir Macerdo só perdem para a rede Globo em faturamento publicitário, estando em segundo lugar ao lado do SBT.
Com tanto poder para influenciar a opinião pública, Edir Macedo, a família Marinho e o banqueiro Daniel Dantas estão muito além do cidadão Kane. Será que vale a pena enfrentar gente tão poderosa? Elvira Lobato e Luis Nassif estão passando um calvário exatamente por fazer o que qualquer jornalista que se preze deveria fazer no seu ofício: investigar, relatar os fatos e informar a população. Enfrentar os poderosos corruptos por amor à verdade parece uma atitude fútil e sem sentido nesses casos. Bem, talvez possa parecer que é sem sentido, mas não é. A livre circulação de informações e o direito da população à verdade têm se mostrado resistentes ao antjornalismo de Veja e companhia.
A Rede Globo, nesses mais de dez anos da existência do documentário de Simon Hartog, falhou no seu propósito de abafar o caso. Várias cópias ilegais do filme em VHS foram repassadas de mão em mão até que o documentário se tornasse distribuído livremente na internet — só no You Tube a primeira parte do documentário teve mais de 100 mil visualizações. E se é verdade que a Veja fez o possível para causar estragos a Nassif, a revista tem demonstrado uma pequena mudança de tom nas suas edições recentes. Há também suspeitas de que tem procurado obstruir as ferramentas de busca eletrônica às matérias que corroboram a denúncia de Nassif, talvez por medo de que sejam mais divulgadas.
No caso Folha X Igreja Universal já são cinco decisões favoráveis à Folha e à jornalista Elvira Lobato — em algumas dessas decisões os fiéis da Igreja Universal foram condenados por litigância de má-fé, sendo obrigados a pagar multa e custos processuais. Além disso, as reportagens de Elvira Lobato parecem estar na base de um inquérito que a polícia federal acaba de abrir para investigar Edir Macedo. O que mostra que os poderosos não são inatingíveis, mas pessoas de carne e osso e falíveis, como todos nós.
Comentários